5 de dezembro de 2012

Blog da Igualdade

Como escavar a História do Possível

Mulheres Incas são resgatadas em livro









A historiadora Susane R. Oliveira *, da Universidade de Brasília, lança hoje (5/12) o seu Por uma História do Possível: Representações das Mulheres Incas nas Crônicas e na Historiografia (Paco Editora, 2012, 252 páginas) . O livro, resultado de intensa pesquisa para seu doutoramento em História, é um resgate do(s) devido(s) espaço(s) ocupados pelas mulheres na “etnohistória” dos Incas. Ou do chamado Império Inca ( Tawantinsuyu em quíchua : As Quatro Partes do Mundo) , na América do Sul, de 1200 até a invasão dos espanhóis, em 1533 .
 
A pesquisa de Susane Oliveira desenvolve os conceitos metodológicos dos Estudos Feministas e de Gênero que “escavam” e trazem à tona o que foi escondido, omitido ou silenciado pelas histórias “oficiais”. Uma historiografia eurocêntrica manca e preconceituosa, fruto de sociedades patriarcais onde os papéis das mulheres, e as suas representações, são repetida e incansavelmente, ainda hoje, relegados ao ostracismo de panos de fundo, como figurantes, ao invés de desvelar seus reais protagonismos.
 
Nesse sentido, as pesquisadoras e escritoras feministas que trabalham para construir a “História do Possível” esmeram-se, na verdade, em levantar a poeira de todo esse discurso de hipocrisia sobre “verdades históricas”. Se há algo mais realista a ser esclarecido, de pronto, é mesmo sobre os imensos apagões e mentiras injustificadas sobre os papéis das mulheres em toda uma gama de atividades, em diversas culturas e épocas.
 
Sobre o caso específico da civilização Inca, uma das mais ricas e marcantes entre os povos pré-colombianos registrados nas histórias das Américas, a pesquisadora e professora de História da UnB escreve:
 
"Nas crônicas e na historiografia, o tema das origens e expansão do “Império” Inca revela os fundamentos políticos-religiosos do governo dos incas sobre os Andes e descreve os valores, as normas e os conceitos de gênero e religião em torno dos quais deviam ser estruturadas as identidades, as relações de parentesco, as hierarquias e os papeis sociais na sociedade incaica. Nesses discursos podemos encontrar indícios de mulheres divinas e humanas, assumindo diferentes atributos e funções independentes de seu sexo biológico; o que nos faz pensar que o sexo biológico não era a base para delimitações no universo sagrado/cosmogônico e social. As representações das deusas (huacas – seres sagrados e heroínas ancestrais), sacerdotisas, guerreiras, e governadoras (Coyas, Capullanas, Curacas) se destacam nesses discursos tanto na construção dos seus limites e possibilidades no cosmos e na organização político-religiosa dos incas, quanto na construção dos fundamentos míticos, políticos, morais e religiosos do “império” Inca."
 
O aclamado jornalista e escritor sueco Stieg Larsson, autor da super best seller Trilogia Millennium (ao todo, foram vendidas mais de 80 milhões de cópias em todo o mundo), bem registra o silenciamento em relação às mulheres e a hipocrisia dos/as historiadores/as do patriarcado eurocêntrico:
 
"Estima-se que em torno de 600 mulheres tenham servido (como soldados) durante a Guerra Civil Americana . Elas alistaram-se disfarçadas de homens. Hollywood perdeu aqui um capítulo importante da História Cultural, ou esta história está ideologicamente muito difícil de lidar? Os historiadores, frequentemente,   têm dificuldades em lidar com mulheres que não respeitam as distinções de gênero e, em nenhuma outra situação, essa distinção é mais nitidamente traçada do que na questão da luta armada. (Mesmo hoje pode causar controvérsias em se ter uma mulher em uma caça de alces tipicamente sueca ). Mas, desde a antiguidade até os tempos modernos , há muitas histórias de mulheres guerreiras , de Amazonas. As mais conhecidas encontram seu caminho para os livros de História como rainhas guerreiras , governantes , ou como líderes.
Elas foram forçadas a agir como qualquer Churchill, Stalin, Roosevelt, ou : Semiramis de Nínive , que moldou o Império Assírio , e Boudicca , que liderou uma das mais sangrentas revoltas inglesas contra as forças (do império) romanas de ocupação , para citar apenas dois exemplos. Boudicca é homenageada com uma estátua no (rio) Tamisa, na Westminster Bridge, no lado oposto ao Big Ben (...) Por outro lado , a história é bastante reticente quanto às mulheres que foram (são) soldados comuns, que carregaram armas , pertenceram a regimentos, e fizeram sua parte na batalha, nos mesmos termos que os homens. Dificilmente uma guerra foi travada sem mulheres soldados nas fileiras." (tradução livre) Stieg Larsson , in Luftslottet Som Sprängdes ( A Rainha do Castelo de Ar ), Trilogia Millennium, Volume 3, Parte 1, Intermezzo em um Corredor .
 
Que sejam revisadas, isso sim, as “literaturas históricas” WASP – gíria em inglês para white, anglo-saxon and protestant (brancos, anglo-saxônicos e protestantes), centro do mundo ocidental. Assim como a história registrada por outros povos patriarcais, que seguem tradições sócio-culturais e religiosas marcadas pela negação e a submissão do sujeito feminino. Nesse contexto, praticamente todas as outras religiões e culturas estão inseridas.

Em carta de apresentação do livro, Susane explica esse processo “reticente” por parte de historiadores ocidentais em lidar com sociedades onde não havia, ou não há, tais distinções e estereótipos de gênero. Segundo ela, o livro vem da necessidade de se escrever uma história que descortine novos horizontes para as identidades e relações de gênero, no caso, no Peru incaico, e que permita “desconstruir” ou desnaturalizar as representações negativas e estereotipadas a respeito das mulheres incas :
 
“A maior parte dessas representações está velada pelo imaginário dos cronistas que redesenharam as mulheres incas segundo os modelos hierárquicos da oposição masculino/feminino, em consonância com os princípios colonialistas e patriarcais que a dominação hispânica tentava impor sobre os Andes. Sob o selo da autoridade científica, parte da historiografia tem repetido e revigorado as representações eurocêntricas e androcêntricas construídas pelos cronistas na apreensão do universo incaico, impondo modelos e limites para a atuação das mulheres incas na história. Os dualismos hierárquicos que moldaram as concepções e relações de gênero no ocidente cristão também estiveram na base da epistemologia ocidental, refletindo-se nos enunciados a respeito das mulheres em nossas tradições historiográficas. Muitos estudiosos ainda revelam uma tendência em projetar o presente sobre o passado, na repetição do mesmo, categorizando-o em termos do binário reconhecido, – masculino/feminino, superiores/inferiores – num padrão de gênero tido como universal que tem como pressuposto a relação continua e determinante entre sexo-gênero. Essas formas de apreensão das culturas pré-colombianas impedem a eclosão de categorias e relações estranhas às nossas matrizes de inteligibilidade do humano, fazendo da história mecanismo de construção e reiteração dos gêneros, refazendo as diferenças e desigualdades entre os sexos na memória social.”
 
* Susane Rodrigues de Oliveira
 
Doutora em História pela Universidade de Brasília, onde é professora na área de Teoria e Metodologia do Ensino de História. Lidera o grupo de pesquisa LABEH - Laboratório de Ensino de História (UnB). É membro do Conselho Editorial da revista História Hoje e do Conselho Consultivo das revistas Caderno Espaço Feminino (UFU), Em tempo de Histórias (UnB) e Ameríndia (UFC). Áreas de atuação e pesquisa: História dos Incas, História das Mulheres, Estudos Feministas e de Gênero, Ensino de História, História da Educação, Historiografia, Representações Sociais e História da América Indígena Antiga e Colonial. É coordenadora de eventos do Grupo de Estudos Feministas da UnB (GEFEM-UnB).

Por Uma História do Possível: Representações das Mulheres Incas nas Crônicas e na Historiografia
 
Sinopse do livro : Quando os espanhóis chegaram aos domínios do Tawantinsuyo, por volta de 1532, se depararam com mulheres indígenas, cujos papéis e funções não se encaixavam nos padrões europeus, prescritos e naturalizados para o sexo feminino. Essas mulheres tinham participação ativa e importante na sociedade, exercendo poder e autoridade na organização política dos incas, sendo inclusive adoradas e reverenciadas como huacas, heroínas e governadoras. Este livro apresenta um estudo das imagens/representações destas mulheres veiculadas nas crônicas coloniais e na historiografia contemporânea a respeito das origens e expansão do Tawantinsuyo.

O livro já está disponível para venda no site da editora: clique aqui .
 
Serviço:
 
A Paco Editorial convida para o lançamento:
 
Dia 05/12/12, às 18h30
Local: Livraria Sebinho – SCLN 406, Bl. C, Lj. 44 – Asa Norte, Brasília – DF


Sobre esta Blogueira:

Sandra Machado é jornalista e professora universitária. Doutora em História – com pesquisa em Estudos de Gênero, das Mulheres, Cinema e Multiculturalismo, pela Universidade de Brasília (UnB). É também Mestra em Cinema e Vídeo pela American University, Washington, D.C, EUA. Repórter e produtora para mídias audiovisuais e impressas - Correio Braziliense, Jornal do Brasil, TV Globo e o Caderno de Livros de O Globo. Sua tese de doutorado está em processo de edição em livro, intitulado Câmera Clara - Tela Obscura: Estereótipos Femininos e Questões de Gênero nos Cinemas. Editora Francis & Verbena.