Mulheres, História e Cidadania
Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB)
Como o próprio título indica, a presente comunicação
é um esforço de reflexão crítica, e portanto histórica, acerca da presença e do
protagonismo das mulheres na construção da cidadania no Brasil. Nesse
exercício, que inclui o ato de desnaturalização da memória e, ao mesmo tempo,
de sua reorganização, o propósito político de conferir visibilidade
historiográfica à presença e protagonismo das mulheres em tal processo. Além
disso, e por conta disso, o propósito em mostrar os efeitos de práticas
discursivas, particularmente a historiográfica, na produção de ocultamentos e
silenciamentos acerca do agenciamento das mulheres na construção da cidadania
no Brasil. Cidadania, percebida na acepção dada por Hannah Arendt (1995), como
“direito a ter direitos”, ou seja, como conceito que envolve um amplo leque de
possibilidades quanto ao acesso aos direitos políticos, civis, sociais, sexuais
e culturais por parte de cada um dos integrantes da sociedade brasileira, sem
distinção de qualquer tipo. A história da conquista desses direitos, tanto ao
norte como ao sul do Equador, é a história dos feminismos que, desde o século
XIX, denunciaram a dominação masculina, expressa em várias formas de opressão,
exclusão e discriminação praticadas contra as mulheres, e lutaram pela sua
emancipação.
É claro que muito antes desses movimentos, e muitas vezes
fora deles, ou até mesmo sem com eles simpatizarem, ou deles terem
conhecimento, muitas mulheres superaram o estigma da condição biológica, ao
ocupar seus lugares de fala e espaços de poder na sociedade brasileira, em
diferentes momentos e contextos. Nesse sentido, e em minha leitura, embora
ciosas do feminino que as conformava e as identificava, essas mulheres não
deixaram, porém, de serem feministas, na acepção contemporânea do termo, pois,
em condições adversas, sob a ordem patriarcal e androcêntrica, construíram de
modo singular suas vidas, esculpiram-se a si próprias, ganharam visibilidade
pública e política, confrontando as prescrições de sua época quanto aos seus
lugares e papéis sociais. Foram protagonistas de suas histórias, marcadas por atitudes políticas pioneiras, inovadoras
e sobretudo transgressoras em seus respectivos campos de atuação.
Se a historiografia delas não fala, não é porque não tenham
existido, mas é porque estavam fora dos locais e dos papéis estabelecidos como
de seu domínio, daí ignorá-las. Como a história é um discurso soletrado no
masculino, apenas reconhece a presença das mulheres nos lugares autorizados,
isto é, no espaço privado da domesticidade e não no da política, da economia e
da guerra. E isso não se dá por acaso, pois, afinal, o privado é o lugar do
confinamento, da exclusão do mundo público e da cidadania; ou, como bem define
Hannah Arendt, é o lugar da “privação”, da “ausência” ou do sentimento de não
existir (ARENDT, 1995). Por outro lado, quando as reconhece naqueles espaços da
política e da cultura ou estabelece para elas um domínio próprio, isolado,
identificado como “História das Mulheres”, ou as retrata na grande narrativa
como “heroínas”.
Significativamente, mulheres atuantes e vibrantes, de carne e
osso, atitudes e sentimentos, por exemplo, Anita Garibaldi (guerrilheira,
republicana e farroupilha), Catarina Paragaçu (índia, guerreira e agenciadora
de alianças entre colonos e tupinambás); Clara Camarão (índia e destemida
combatente na guerra contra os holandeses), Maria Quitéria de Jesus
(nacionalista, transgressora e combatente audaciosa), Madalena Caramuru (letrada
e pioneira abolicionista), Leopoldina de Habsburgo-Lorena (política habilidosa,
mulher ilustrada e governante interina do Império), Princesa Isabel (política,
regente do reino por três vezes e abolicionista) – encontram-se incorporadas na
grande narrativa histórica, porém, na condição de heroínas.
Ao serem significadas como heroínas, as mulheres são
desumanizadas, aprisionadas a uma construção mitificadora que opera o sequestro
de suas dimensões humana e histórica. Afinal, heroína é um ser mítico, etéreo,
a-histórico, a-temporal, privado de existência própria, porque localizado no
panteão dos não-humanos, elevado à condição de modelo, subtraído de sua
humanidade e de sua historicidade. Nessa construção engenhosa, as
mulheres/heroínas são incluídas na narrativa histórica justamente porque não
desestabilizam a ordem do discurso com suas condutas diferentes; reforçam,
aliás, a ordem patriarcal como pessoas excepcionais, imagens idealizadas e
modelos de mulher e de mãe, orientadores da conduta feminina sob aquela
perspectiva.
O protagonismo de cada uma dessas mulheres foi assim
esvaziado de conteúdo político, ao ser domesticada como heroína pela/na
historiografia. Este discurso, ao representá-las como heroínas (redentora,
paladina, patrona, libertadora, mãe do povo brasileiro, mãe da nação), apazigua
o efeito perturbador de suas atuações fora dos lugares e dos papéis a elas
prescritos como próprios de seu sexo social, recolocando-as como seres
a-históricos. Nessa construção, evidenciam-se os jogos de poder que presidem a
escrita da história e os usos da memória tecida em meio a uma política de
ocultamento, mitificação, exclusão e negação da presença e participação
histórica de alguns atores sociais, dentre estes, as mulheres.
Excluídas do discurso histórico, e também de outros, como o
literário, o filosófico e o científico, encontram-se muitas mulheres que, não
obstante suas contribuições para o mundo da cultura e do saber, tornaram-se
objeto de políticas de exclusão e de silenciamento. Ocasionalmente, quando
algumas delas são incorporadas naqueles discursos são tratadas como exceções
que confirmam a regra de que os mundos da cultura, da escrita e das ciências
ainda permanecem como domínios masculinos. Suas atuações políticas e
históricas, importantes para a construção da cidadania brasileira, foram
reconhecidas nas referidas áreas de atuação como “casos excepcionais”, de modo
a ressaltar que, em assuntos de homens, não há espaço para mulheres “normais”.
Como historiadora, feminista e cidadã, não poderia deixar de destacar a
política de silenciamento historiograficamente praticada em relação ao
protagonismo das mulheres na construção da cidadania brasileira. O exercício do
poder evidencia-se na domesticação que a história faz do passado, significado
conforme a lógica sexista dominante, que controla, no presente, o modo de ver e
de representar o passado e, desse modo, tem o poder de definir o que deve ser
incluído e excluído, tornado visível ou invisível, narrado ou silenciado. A
memória da escrita da história apresenta-se, assim, como o relato das disputas
pelo controle da leitura do passado, pois, afinal, quem tem esse controle
estabelece a visão do presente e respectiva orientação.
Na história da cidadania brasileira, o direito de votar e ser votado/a
foi significado como o primeiro passo, o requisito jurídico da primeira etapa
de um processo em direção à construção de uma sociedade democrática. Votar e
ser votado/a são direitos constitucionalmente assegurados atualmente na
sociedade brasileira a todas as pessoas, de ambos os sexos, maiores de 16 anos,
alfabetizadas ou não. Votar e ser votado/a, vistos, portanto, como verbos de
localização, o ato gestual primeiro que confere à/ao votante a identidade
comum de cidadã/cidadão, que estabelece seu reconhecimento e autoreconhecimento
como integrante da nação brasileira, essa comunidade imaginada, tal como a
define Benedict Anderson (2008). Votar e ser votado/a, como verbos de
identificação, pois, nas respectivas ações, os seus sujeitos, a/o votante e
a/o votada/o, inscrevem-se como cidadãs/cidadãos com direitos aos seus espaços
de fala e lugares de sujeitos
históricos, independentemente de sua condição de sexo/gênero, classe, raça,
etnia, estado civil, ocupação, escolaridade, religião e região.
Não por acaso, no exercício desse direito, no Brasil, as mulheres
estiveram dele excluídas, de 1824, data de nossa primeira Constituição, até o
novo Código Eleitoral de 1932, ou seja, por mais de um século. Nessa duração,
desconsideramos a experiência colonial, quando, reconhecidamente, as mulheres
não participavam dos processos de escolha, direta ou indireta, dos
representantes dos colonos junto às Câmaras de Vereança, órgão da administração
colonial, reservado aos “homens bons” das vilas e cidades. Mesmo sendo
“mulheres boas”, isto é, detentoras das qualidades exigidas àqueles –
honestidade, honradez, zelo com a coisa pública, proprietária de bens,
capacidade administrativa, fidelidade ao Rei e à Coroa Portuguesa – , ficavam
de fora das referidas eleições, ato cívico e político de domínio masculino.
“Ficar de fora” explicita a perversa divisão
assimétrica do sistema sexo/gênero – mulheres para lá, homens para cá –
praticada na sociedade brasileira desde o século XVI, com desdobramentos até os
dias atuais, não obstante a política de igualdade de gênero implementada pelos
governos, nos níveis federal, estadual e municipal. Trata-se de divisão que
explicita a perversa lógica da partilha desigual de gênero, ordenadora das
sociedades ocidentais, inclusa a brasileira, ao conferir ao feminino uma
posição de inferioridade em relação ao masculino. Embora compreenda um
construto social, cultural, lingüístico e histórico, a representação de gênero
encontra-se, porém, naturalizada no imaginário social como anterior à história,
isto é, como algo inerente à ordem das coisas, à uma suposta “essência”
feminina e masculina, à natureza imutável do sexo biológico, responsável pelas
características definidas como inatas a cada um dos gêneros.
Nesse modo de ver, representar e significar as mulheres e o feminino,
historicamente produzido e naturalizado por práticas cotidianas sexistas
operantes na estruturação do saber e das relações sociais em nossa sociedade,
as mulheres foram definidas como seres inferiores, desprovidos da capacidade de
atuar no espaço da cultura e da política. Afinal, a lógica ordenadora da
experiência colonial, tributária da tradição cristã e de sua visão
androcêntrica, patriarcal e heterossexual de leitura do mundo foi reafirmada na
organização da sociedade brasileira
também após a independência do país, no Império e na República.
Estabelecer, na partilha desigual, “homens para cá”, ou seja, o espaço
público e político como de domínio masculino, e “mulheres para lá”, ou seja,
espaço privado e despolitizado como de domínio feminino, é construção
atravessada pela lógica de gênero, essa representação social, esse saber que,
como define Joan Scott (1990:12), confere “significados diferentes para as
diferenças corporais”, estabelecendo o masculino como superior em relação ao
feminino. Representação, essa, que se encontra veiculada e naturalizada graças
ao funcionamento de complexas tecnologias sociais – leis, discursos, escola,
instituições, cinema, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas,
bem como práticas cotidianas – produtoras/reprodutoras dos efeitos de gênero,
isto é, de masculino e feminino nos corpos, comportamentos e relações sociais
(LAURETIS, 1994: 208).
A divisão público/privado é construto historicamente datado e localizado
nas sociedades ocidentais modernas oitocentistas, não sendo a brasileira
exceção. Nesta, sua primeira constituição, de 1824, excluiu as mulheres do
direito ao voto. Com efeito, independentemente de sua condição de classe,
idade, raça, etnia, nacionalidade, condição civil, escolaridade, religião e
ocupação, elas compunham, junto aos escravos e escravas e aos homens livres e
sem posses, a desclassificada categoria dos não-cidadãos da sociedade
brasileira, embora já representassem, à época, praticamente a metade da
população do país. Trata-se de discriminação fundamentada naquela partilha,
como lucidamente assinala Michelle Perrot, ao refletir sobre idêntica prática
na sociedade francesa do mesmo período:
No espaço público, aquele da cidade, homens e
mulheres situam-se nas duas extremidades da escala de valores. Opõem-se como o
dia e a noite. Investido de uma função oficial, o homem público desempenha um
papel importante e reconhecido. Mais ou menos célebre, participa do poder
(...). Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher – também se diz “a
rapariga” – pública é uma “criatura”, mulher comum que pertence a todos.
(PERROT, 1998: 57)
Da exclusão do “direito a ter direitos” dos textos
constitucionais de 1824 e de 1891, ao Código Eleitoral de 1932, quando
finalmente as mulheres tiveram formal e legalmente reconhecido pela União seu
direito de votar e de serem votadas, um longo percurso foi traçado, sempre
tensionado e bastante nuançado, com avanços e recuos. Trata-se de percurso
desenhado com diversas tintas, ruídos e cores, com múltiplas práticas de
resistência e também de submissão, de confronto e também de negociação, de
anuências e também de recusas, de inclusões e também de exclusões, de
afirmações e também de negações, de agenciamentos e também de assujeitamentos.
Percurso, esse, constituído na e pela história e, como tal, atravessado por
continuidades e descontinuidades. Processado, portanto, não de forma linear e
contínua em direção a um suposto estágio final de progresso e civilização,
consoante a perspectiva evolucionista do século XIX, ou rumo ao sonhado estágio
final do comunismo, segundo a orientação etapista do marxismo, perspectiva que
alimentou projetos socialistas do século XIX. Enfim, um percurso balizado pelos
dois dos principais modos de ver e de dar a ler a experiência histórica
brasileira nos séculos XIX e XX, respectivamente.
Tal linearidade é negada tanto pela emergência do novo como
pela retomada do que se julgava superado, haja vista o crescimento da violência
contra as mulheres na contemporaneidade brasileira, num contexto em que os
direitos das mulheres encontram-se constitucionalmente prescritos,
regulamentados e objetos de políticas públicas. Conforme o Mapa da Violência no
Brasil, de 2010, no período de 1997 e 2007, um total de 41.532 mulheres
morreram vítimas da violência de gênero, o chamado feminicídio; um índice
assustador de 4,2 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil habitantes; ou
seja, em 10 anos, dez mulheres foram assassinadas por dia no Brasil.
Observa-se, assim, a permanência de práticas de violência de gênero,
como assassinatos, estupros, assédio sexual, agressões físicas, psicológicas e
morais, nos âmbitos do privado e do público, não obstante as conquistas no que
tange à igualdade de direitos entre os sexos, traduzida na Constituição de
1988. Igualdade, essa, legalmente assegurada e implementada por meio de ações
que envolvem desde a legislação regulamentar às políticas públicas, aos
programas sociais e culturais, aos contratos civis e comerciais, às
organizações político-partidárias, às relações de trabalho, do acesso aos bens
e serviços, dentre outras.
Trata-se de permanência reveladora da lógica sexista ainda
operante em nossas relações sociais cotidianas e que respondem, inclusive, pelo
desconhecimento das vítimas dos abusos físicos, psicológicos e morais,
principalmente na intimidade de seus lares, quanto ao assegurado na Lei Maria
da Penha. Com efeito, não obstante essa grande conquista, a dependência
financeira e afetiva, ao lado da desinformação acerca dos próprios direitos,
continuam alimentando o círculo de violência contra as mulheres por parte de
seus maridos/amantes/namorados/companheiros/familiares. Segundo a Defensoria
Pública do DF, dentre as maiores dificuldades de plena efetivação da Lei Maria
da Penha, destacam-se a falta de informação e o medo da acareação e das
conseqüências sociais e familiares de um processo judicial. E não sem razão.
Afinal, revelar, na justiça, detalhes da vida íntima é, sem dúvida,
constrangedor. Como bem avalia Olgamir Ferreira, da Secretaria da Mulher do DF,
o aparato do judiciário é “uma estrutura machista. A vítima se depara com um
homem togado, representante do poder, que irá deliberar sobre seu futuro.”
(Correio Braziliense, 29/09/2012)
Não há como ignorar que, no que tange aos direitos das
mulheres e seu acesso à cidadania no Brasil, avanços foram acompanhados de
recuos também no âmbito do arcabouço jurídico-institucional que fundamenta as
relações entre sociedade e Estado. Cabe lembrar, por exemplo, os recuos quanto
ao estado de direito, não apenas nos anos de chumbo dos governos militares de
1964-1984, que atingiram indistintamente mulheres e homens, como também em
1937. Se o ano de 1937 configurava-se como um momento promissor para a
aprovação das propostas de criação do Estatuto da Mulher e do Departamento
Nacional da Mulher, apresentadas pela deputada Berta Lutz como representante da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, foi, porém, interrompido com o
fechamento do Legislativo e implantação do Estado Novo, por ato do presidente
Getúlio Vargas (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 232). Quanto ao contexto de
1964-1984, da ditadura militar, diferentemente das européias e norte-americanas
que viviam nessa mesma época sob regimes democráticos, as brasileiras viram
seus direitos conquistados cerceados e/ou sequestrados pelos governos dos
generais. Assim, enquanto na França, por exemplo, as feministas combatiam o
patriarcado e defendiam a liberdade sexual,
por aqui, o machismo era apenas um dos “inimigos” a ser combatidos, já que
na pauta das reivindicações a prioridade foi a abertura política.
Enfim, entre conquistas, recuos e fracassos, foram
experiências importantes e indispensáveis à construção da cidadania brasileira,
efetivadas em meio a muita luta, em um campo tensionado e presidido por
discriminações de sexo/gênero, além de outras que presidem as relações em nossa
sociedade ainda atravessada por vários tipos de desigualdades. Individual e
coletivamente, as mulheres brasileiras protagonizaram combates e
enfrentamentos, configurando o que a historiadora Joan Scott denomina
“movimento da história das mulheres” (SCOTT, 1992:64). Dele fazem parte os
feminismos anteriores e posteriores a 1975, considerados pelas mudanças
operadas, como o “mais importante movimento social do século XX”, como o
designa o historiador Eric Hobsbawm, desobrigando-se, contudo, de escrever uma
linha sequer sobre o assunto (HOBSBAWM, 1995).
Com suas diferentes bandeiras, programas e estratégias de
luta, esses movimentos sociais e políticos foram até há pouco tempo
praticamente ignorados pela comunidade de historiadores. Apenas recentemente
tornaram-se objeto de estudos de uma área específica do campo historiográfico,
reconhecida como História das Mulheres. Assim mesmo, trata-se de temática ainda
vista com reservas, resistências e hierarquizações, reproduzindo preconceitos
que informam as relações sociais cotidianas brasileiras (MUNIZ, 2010).
Feminista, afinal, ainda é palavra carregada preconceitos, sua conotação
pejorativa afugenta gregos e troianas, ou seja, não apenas historiadores e historiadoras,
mas, sobretudo, muitas mulheres que se sentem ameaçadas diante do termo, com
receio de estarem a ele associadas, com medo do feminino que as habita ser
assassinado justamente por quem o defende, as feministas. Não há como não
deixar de atentar para o fato de como as representações são persistentes e
poderosas em sua força instauradora e naturalizadora de imagens, sentidos e
preconceitos.
Não se pode negar que, no Brasil, a igualdade de direitos
entre os sexos, no que concerne à educação e ao voto – as primeiras conquistas
– , é resultado das lutas feministas do final do século XIX e início do XX, a
chamada “primeira onda”, identificada com a agenda das sufragistas. A luta de
nossas precursoras, revigorada pelas manifestações sociais e políticas do advento
da República, foi vitoriosa em 1932, com a aprovação do novo Código Eleitoral
que assegurou às brasileiras o direito de votar e de serem eleitas. A
incorporação desse princípio à Constituição ocorreu em 1934, quando esta foi
então votada e promulgada. Trata-se de uma conquista relativamente tardia em
relação às neozelandesas (1893), ás americanas (1920), às inglesas (1928), às
finlandesas (1906), às norueguesas (1913), mas antes das francesas (1944), das
italianas (1948), das suiças (1981) e das portuguesas (1974).
Foi uma luta travada em meio a um clima de forte oposição às
reivindicações das mulheres, traduzida em preconceituosas críticas às demandas
feministas, veiculadas na imprensa, em peças teatrais, crônicas, caricaturas, e
centrada em ridicularizar o movimento sufragista, como bem lembra Rachel Soihet
(2012: 219). Embora a campanha sufragista não tenha tornado-se aqui um
movimento de massa, esta se caracterizou pela sua excelente organização, o que
fez do Brasil o segundo país da América Latina, depois do Equador, a garantir o
direito de voto às mulheres. Como a maioria das líderes feministas sufragistas
originava-se das classes privilegiadas, recebera uma formação escolar
diferenciada e relacionava-se com figuras de projeção nacional, elas souberam
aproveitar-se disso para obter simpatias para a causa. Com Vargas no poder e
seu projeto político de legitimação e de modernização do seu governo, o sonho
do voto feminino se concretizou (Idem, ibidem).
Não por acaso, algumas mulheres envolvidas, direta ou
indiretamente, com essa luta ganharam recentemente visibilidade nas narrativas
sobre o evento, integrando o pantheon
das “mulheres célebres”, “brasileiras ilustres”, “mulheres excepcionais”.
Mulheres atuantes – como Celina Guimarães Viana, primeira eleitora do Brasil,
votante em 1927; Alzira Soriano, primeira prefeita da América Latina, eleita em
1928; Antonieta de Barros, primeira deputada negra do Brasil, eleita em 1934;
Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal da América Latina, eleita
em 1933; Maria do Céu Pereira Fernandes, primeira deputada estadual do Rio
Grande do Norte, eleita em 1934; Olga Benário, ativista política da Aliança
Nacional Libertadora, movimento antifascista e antiimperialista, com atuação
nos anos 1935-1937; Bertha Lutz, líder feminista, sufragista, integrante do
grupo criador da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, em 1919,
embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – , foram algumas das
protagonistas selecionadas como representativas da história e da memória da
participação das mulheres na construção da cidadania no Brasil. Sua presença e
atuação nessa construção ganharam visibilidade graças ao projeto de
incorporação das mulheres no discurso historiográfico.
Observa-se, assim, que a aprovação da constitucionalidade do
direito de voto para as mulheres não foi iniciativa e nem mesmo concessão do
governo Getúlio Vargas, como veiculado e significado em diversas narrativas
históricas e sob esse modo de ver apropriado e naturalizado no senso comum. A
conquista desse direito foi resultado de insistentes mobilizações dos
movimentos feministas. Estes, desde o final do século XIX, empreenderam ações
que envolveram exaustivas campanhas, intensas disputas, inesgotáveis
negociações, intrincadas articulações entre as próprias integrantes e entre
estas e as lideranças políticas, associações de classe, sindicatos, partidos
políticos, intelectuais, congressistas e governantes, em prol de seus programas
de luta: educação e voto para as mulheres (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 230-235).
Apesar de ter sido um movimento articulado às elites, não se
pode dizer que não tenha se empenhado também em outras causas democráticas.
Como bem avalia Rachel Soihet:
várias das militantes desse movimento estavam também preocupadas em
garantir conquistas para os trabalhadores, particularmente, às mulheres das
classes trabalhadoras. Entretanto, isto não foi prioridade da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino. Além disso, havia uma certa distância, em
termos de interesses e visão de mundo, entre as militantes dessa entidade – em
sua maioria, profissionais liberais ou membros da burguesia – e as mulheres das
classes trabalhadoras, mais preocupadas com a questão da sobrevivência do que
com o problema específico de votar. (SOIHET, 2012: 226)
É claro que seria impensável, à época, o direito ao voto, à
cidadania política, sem o acesso aos bancos escolares. No final do século XIX,
o sexo feminino representava apenas cerca de menos de 30% da totalidade da
população escolar do país, nível instrução primária. Esse quantitativo já
representava um avanço, considerando-se que no início do mesmo século apenas
cerca de menos de 8% das meninas em idade escolar frequentavam as escolas
femininas de instrução pública do Império (MUNIZ, 2003). Não por acaso, o
acesso à educação formal foi uma das agendas das “primeira onda” dos movimentos
feministas, ao lado do direito ao voto e ao trabalho. O direito à educação foi
reivindicação árdua e insistentemente defendida por várias mulheres desde o
século XIX e revela-nos mais uma forma de sua participação política. As
mulheres fizeram uso da escrita como arma política para defender seus direitos,
o principal deles, o de ter acesso à educação. Escrever para “ter direito a ter
direitos”, inclusive o de escrever e ter lugar de fala no espaço da cultura,
definido como de domínio masculino.
Campanhas na imprensa em defesa da escolarização das meninas,
particularmente jornais produzidos por mulheres nas principais províncias do
Império, respondem assim pela expansão, lenta e gradual, do atendimento escolar
feminino. Conforme assinala Moraes (2003: 506), trata-se de imprensa feita por
mulheres, e não somente para as mulheres, em que se destacam os jornais O
sexo feminino, de Francisca Senhorinha da Motta Diniz, editado em Minas
Gerais, em 1875; O Domingo, de 1874, de Violante de Bivar e Vellasco, no
Rio de Janeiro; Mysotis, de Maria Heraclia, em Recife, 1875; O Echo
das Damas, de 1879, de Amélia Carolina da Silva Couto, no Rio de Janeiro,
dentre os principais periódicos da época. Além das editoras, ganharam
visibilidade na imprensa autoras como os de Nísia Floresta, Júlia Almeida,
Narcisa Amália, dentre várias outras mulheres com atuação expressiva no
movimento primeiro de defesa do direito de educação e de voto para as mulheres.
Com efeito, na campanha, veiculada na imprensa, foi
ressaltada a importância da emancipação e da escolarização femininas para o
progresso do país que ainda ensaiava seus primeiros passos em direção à
modernização e à cidadania. Francisca Diniz, por exemplo, uma das primeiras
feministas brasileiras, professora em Campanha/Minas Gerais, no século XIX, foi
vigorosa defensora da emancipação feminina e da exigência de se cumprir o
direito constitucional de acesso das meninas/mulheres aos bancos escolares para
que tal projeto se efetivasse. Publicou o jornal O sexo feminino (1873),
veículo criado para divulgação de suas idéias e propostas, bem como a cartilha
de campanha Mulheres sem medo do poder, em que defende os direitos à
instrução e ao voto feminino (SILVA, NASCIMENTO e ZICA, 2010: 232-233).
O acesso das meninas aos bancos escolares no século XIX e
primeiras décadas do XX foi, porém, diferenciado e desigual em relação aos
meninos, pois a formação ali recebida reafirmava, para aquelas, o destino ligado
ao ventre, à maternidade; ou seja, a preparação para se tornarem boas donas de
casas, zelosas mães e dedicadas esposas. Já para os meninos, a formação escolar
oferecida possibilitava-lhes o ingresso no mundo do trabalho e da política.
Currículos diferenciados segundo o sistema sexo/gênero – ensino de ciências e
humanidades para os meninos e “ler, escrever e contar” e trabalhos “d’agulha”
para as meninas – produziam/reproduziam a lógica sexista operante na
estruturação da sociedade brasileira da época, bem como de posteriores. Apenas
com a ampliação dos espaços de formação escolar e de capacitação profissional –
cursos secundários, sistema de co-educação escolar mista, criação das
Universidades e particularmente das faculdades de filosofia, a partir de 1934
–, é que, efetivamente, observa-se um redirecionamento curricular no sentido de
eliminar o sexismo na educação. Não por acaso, o combate a esse tipo de sexismo
constituiu uma das pautas da agenda política da “segunda onda” dos movimentos
feministas (1970-2010).
Cumpre lembrar que as restrições impostas por currículos
sexualmente diferenciados não impediram, porém, o acesso das mulheres ao ensino
superior, ainda no século XIX: foi o caso das pioneiras Maria Augusta Generosa
Estrella, graduada em 1882, em Medicina, nos Estados Unidos e Rita Lobato,
graduada em Medicina, na Bahia, em 1887. Tal acesso foi, sem dúvida, demorado
em relação aos meninos: setenta e nove anos após a fundação da primeira
instituição de ensino superior no Brasil e oito anos após a Lei Leôncio de
Carvalho que garantiu às brasileiras ingresso no ensino superior no Brasil.
Acrescente-se que nem sempre a defesa do acesso e progressão das mulheres à
educação forma foi sustentada por razões emancipatórias para além da
função doméstico-maternal. Durante os séculos XIX e XX, e mesmo no início do
XXI, tem sido ainda apresentada a justificativa de que se deve investir na
educação das mulheres porque “mulheres educadas são melhores mães” (ROSEMBERG,
2012: 330). Na realimentação desse papel tradicional, a evidência do
“dispositivo amoroso”, de que fala Tânia Swain, segundo o qual
O amor está para as mulheres o que o sexo
está para os homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento
identitário. O dispositivo amoroso inverte e constrói corpos-em-mulher, prontos
a se sacrificar, a viver no esquecimento de si pelo amor de outro. As
profissões ditas femininas partilham estas características: enfermeira,
professora primária, doméstica, babá, etc. (SWAIN, 2008; 297)
Contemporaneamente, as mulheres são maioria no ensino
superior e médio no Brasil e em quase metade dos países do Ocidente. Obtém
melhores notas que os homens em geral, repetem menos de ano, tendem a ter
desempenho excepcional em língua e interpretação de texto e já invadem antigos
redutos do sexo masculino, como a matemática e as ciências, segundo Relatório
sobre o Desenvolvimento Mundial, de 2010. O resultado dessa “revolução
educacional” permitiu às mulheres avançar a passos largos no mercado de
trabalho onde representam 64% de sua força, quase o dobro dos 39% observados em
1980. Todavia, apesar dos visíveis avanços, elas ainda ganham menos que os
homens na mesma função e ocupam poucos cargos altos nos governos e de chefias
nas empresas privadas.
Além disso, embora representem mais da metade do eleitorado
brasileiro, tem influência muito limitada na política, não conseguiram o
ingresso nos partidos políticos e no parlamento, em termos numéricos, tal como
ocorreu com os homens: representam apenas 15,31% do congresso, sendo que somente
9% delas estão entre os 100 parlamentares mais influentes do Senado e da Câmara
dos Deputados, segundo dados de 2011 do Departamento Intersindical de
Assessores Parlamentares (DIAPS). Nesses dados, as evidências de que a
desigualdade de gênero ainda permanece informando as práticas sociais
cotidianas não apenas no âmbito do privado, mas, sobretudo, no espaço do mundo
do trabalho remunerado, da política e da cultura. Os dados também apontam para
os avanços e mudanças ocorridas em nossa sociedade em razão, sobretudo, das
lutas feministas em defesa da promoção das mulheres como cidadãs.
Com efeito, os feminismos contemporâneos, pós-1975, respondem
pela ampliação da cidadania no Brasil, em suas lutas pela redemocratização do
país (anos 1970/1980) e também por igualdade, justiça, educação, creches,
saúde, reprodução, sexualidade, descriminalização do aborto, combate à
violência doméstica e representação política. O ano de 1975, Ano Internacional
da Mulher, é reconhecido como marco de um revigoramento dos movimentos
feministas e/ou das mulheres aqui no Brasil – e também fora dele – com seu
programa em prol de uma sociedade efetivamente cidadã, isto é, uma sociedade
onde a igualdade entre os sexos e também o respeito às diferenças encontram-se
assegurados. Sob o lema “Diferentes, mas não desiguais”, a segunda onda
feminista no Brasil, não obstante sua diversidade cultural, racial, social,
política e ideológica, encontra-se mobilizada em torno do projeto comum de
efetivação e ampliação dos direitos das mulheres, ao combater o uso político da
diferença para instaurar desigualdades e, sobretudo, lutar pela transformação
das relações humanas.
Trata-se de projeto político de mudanças com vistas ao
reordenamento da sociedade sob outros termos e bases, ou seja, fora da lógica
da supremacia masculina. Na pluralidade e diversidade de sua composição – são
mais de 1000 grupos espalhados pelo país, atuando em diferentes setores:
partidos políticos, estrutura do Estado, sindicatos, grupos autônomos,
organizações governamentais e não-governamentais, associações de moradores,
instâncias de controle social, universidades (SCHUMAHER e BRASIL, 2000: 235) –
esse movimento da “segunda onda” aglutina-se em torno do propósito e do esforço
comum de construção de uma sociedade cidadã, que exige eliminar toda e qualquer
tipo de violência contra as mulheres, de modo a assegurar-lhes, enfim, seus
lugares nos espaços de poder e decisão.
Tão revolucionários quanto os
movimentos da “primeira onda” e sua luta em prol dos direitos das mulheres quanto
à educação, voto e trabalho – os feminismos da “segunda onda” investiram na
agenda da emancipação das mulheres ao fazer a defesa de seus espaços no mundo
profissional e pessoal e, sobretudo, na sexualidade. A abertura política no
final dos anos 1970 e a redemocratização do país nos anos 1980, as
possibilidades abertas quanto a um maior diálogo com as feministas francesas,
inglesas e americanas, o uso da pílula anticoncepcional e o acesso a
tecnologias reprodutivas são algumas das mudanças inscritas no movimento dessa
“segunda onda”, experiência mediante a qual “as mulheres se tornaram mais
conscientes de seu papel como sujeitos políticos de direitos, com plena e total
cidadania”, como bem avalia Tânia Navarro Swain (Jornal da Comunidade,
29/09/2012).
Todavia, continuando com a historiadora, tal conscientização confronta-se
com um “cotidiano ainda atravessado por práticas sexistas, explícitas ou não,
dentre elas, a violência material e simbólica, o assédio, a discriminação no
trabalho, a diferença salarial, que mostram que há muito ainda a ser feito.”
(Idem, ibidem). Com efeito: há muito ainda a ser feito. Nesse fazer, não
podemos e nem devemos abrir mão da perspectiva libertária dos feminismos para
pensar o mundo e, sobretudo, pensar sua transformação, pois, afinal, como nos
ensina Foucault, “já que as coisas existentes foram feitas, podem, com a
condição que se saiba como foram feitas, serem desfeitas.” (FOUCAULT, 1994:
449). Desfaze-las e faze-las nos termos propostos pelos feminismos, de modo a
transformar a libertação em efetiva liberdade para todos nós, que habitamos o
planeta Terra, permanece sendo nosso desafio e nossa tarefa incontornável.
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